sexta-feira, 25 de setembro de 2009

A Paixão segundo G.H segundo o NY Times


O deserto Africano de Camus, a barata de Kafka e indigestão de Sartre visitam o brilhante romance filosófico de Clarice Lispector, “A paixão Segundo G.H”. Seria a talentosa Brasileira o elo perdido entre os dois grandes movimentos intelectuais da França moderna, existencialismo e estruturalismo? Isto talvez explique porque, pouco conhecida nos Estados Unidos, ela é levada muito a sério na França. O Existencialismo incita o risco, a escolha, a liberdade alcançada ao se jogar fora papéis sociais aprendidos e categorias de pensamento recebidas. O Estruturalismo, com um foco um pouco diferente, estuda tais categorias de pensamento e as vê inescapavelmente interligadas por estarem embutidas na própria linguagem.

Lispector faz ao mesmo tempo da linguagem meio de aprisionamento e libertação, e seu texto é moldado no estilo de um manual de meditação, um conjunto de exercícios espirituais que levam a ao menos uma relação mais autêntica com o mundo, consigo e com os outros. Ela enraíza a influência francesa profundamente em solos brasileiros. O resultado é um luxuriante e fascinante híbrido.

G.H é a narradora do romance. Nós jamais saberemos seu nome completo porque o princípio de sua identidade é escasso, reduzido, como ela diz, às iniciais em sua bagagem. E ao final de sua estória seu nome é por demais uma parte pequena de sua realidade para ser mencionado. Ela é um tipo que Lispector já trabalhou na memorável coletânea “Laços de Família” , onde mulheres mimadas e protegidas da classe alta Brasileira descobrem que o tédio pode ser o precursor da revelação. G.H é um outro membro dessa classe hedonista, escultora, solteira e sem filhos, que mora em uma cobertura muito acima das barulhentas ruas do Rio.

Uma manhã ela decide limpar o quarto da empregada nos fundos do apartamento. O que ela lá encontra a choca de tal forma que lhe coloca numa busca por autoconhecimento em que se constitui o resto do livro. Cada capítulo a leva mais longe da complacência supra organizada e sentimentalizada de sua vida até então, até quando finalmente, após uma mística comunhão tal barata Kafkiana, ela chega a um novo plano do ser, uma aceitação de si mesmo despida de todos seus atributos anteriores. No decorrer de sua trajetória existencialista ela enriquece a linguagem do movimento com um novo conjunto de termos, relacionados com o paladar.

A tendre indifference du monde de Camus se torna “o gosto de viver. Que é um gosto quase inexistente” – como o do leite materno, ou da hóstia. O cenário desta grande aventura da alma é doméstico e até mesmo claustrofóbico. Tudo acontece no quarto da empregada nos fundos do apartamento. Este, contudo pode ser o ponto. Apenas o choque de se ver através dos olhos da ex-empregada consegue colocar G.H a caminho da liberdade. A astúcia de Lispector ao misturar termos de Sartre com termos Cristãos carrega uma forte mensagem social. Numa relação entre opressor e oprimido nenhum é livre. Lispector expande mais o alcance de seu texto com redes metafóricas. O Egito Ancestral, onde o uso da escrita e uma organização social começaram e floresceram junto, é um leitmotiv nos capítulos iniciais. Com característica ambigüidade fluida, o opressivo Egito se torna um refúgio, uma ilha deserta de sanidade no verde Oasis animado que é o Brasil. A imaginação fértil da autora, seu dom para produzir imagens que nos levam a quase sentir o sabor ou o cheiro das idéias pode ser traduzido, diz Ronald Souza, que traduziu o livro para o inglês. As manobras lingüísticas, os trocadilhos e os jogos gramaticais são de impossível tradução, ele diz.

Fonte: New York Times

Tradução do Artigo: Drigo


"É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo. Perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando. Não sei o que fazer da aterradora liberdade que pode me destruir. Mas estou tão pouco preparada para entender. Mas como faço agora? Por que não tenho coragem de apenas achar um meio de entrada? Oh, sei que entrei, sim. Mas assustei-me porque não sei para onde dá essa entrada. E nunca antes eu me havia deixado levar, a menos que soubesse para o quê.

(...)

Mas por que não me deixo guiar pelo que for acontecendo? Terei que correr o sagrado risco do acaso. E substituirei o destino pela probabilidade.

(...)

Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar".

Clarice Lispector

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